Rio de Janeiro, 10 de agosto de 2016

Caro Francisco,

Primeiramente, Fora Temer.

A última vez que a gente se viu, você estava dentro de um carro, e eu, com mais alguns, do lado de fora. Você baixou o vidro, apertamos a sua mão, e eu, ainda emocionada, tentei falar alguma coisa verdadeira. "Obrigada, Chico! Obrigada! Obrigada..." O carro foi embora.
Eu tinha muito mais para dizer. Mas naquele instante, essa foi a única palavra que me veio: obrigado.

De fato, aquela noite foi importantíssima para nós, ocupantes do MinC e do Canecão. A participação de tantos artistas, a determinação da Bia Lessa, a parceria do público, assim como a sua simples presença, se repercutem até hoje na vida da ocupação, nos nossos abraços quotidianos, na nossa criatividade coletiva.
É que na verdade, você já estava com a gente há bastante tempo. Lá no Capanema, ocupando mais de dois meses e resistindo até o último dia, quando amanhecemos com passos e gritos de policiais mascarados e absurdamente armados. "Chame ladrão! Chame ladrão!" Eles não conseguiram nos impressionar. Ficamos juntos e bem-humorados. E cantamos, a manhã toda. Pode parecer vão e romântico, mas precisávamos disso. Mais do que cantos de guerra, são sonhos e situações. Referências e preciosas lembranças coloridas de um sinistro dia. A gente precisa se identificar com alguma coisa.

Às vezes, eu me pergunto por que nós estamos aqui. Quer dizer: por que nós? Muita gente é contra o golpe. Mas aqui somos poucos. O que nos move? Qual é a nossa fonte de energia para ficar debatendo de madrugada sobre qualquer assunto ou varrendo uma semana inteira um teatro abandonado e habitado por ratos e escorpiões?
Eu acho que, no fundo, a coisa não é racional. Tem algo a mais. Algo emocional, vindo do nosso imaginário coletivo e dos nossos corações. Somos todos João e Maria. Queremos ser o herói da música. Somos loucos. Somos sonhadores que ainda acreditam nos seus sonhos.

Vou te contar um segredo, Chico. Eu não sou daqui. Eu vim para ocupar o ministério da cultura, mesmo. Mas viajar sempre fez parte da minha vida e eu costumo andar de mochileira tocando e cantando na rua – aliás, vou ficar te devendo alguns direitos autorais. Mas é lindo isso, não é? Aí, sim, é romântico. Só que, na verdade, é uma desgraça, também, sabia? Cantar na rua, às vezes, me dá uma vergonha, uma angústia, uma vontade de me esconder para sempre. Cada vez que eu tenho que sair para arrumar um dinheiro, eu fico procurando alguma desculpa para não ir. Hoje é segunda feira... vai chover... está frio... não vai ter ninguém na rua... não vai dar certo, não vai dar certo... e será que eu preciso de dinheiro, mesmo? Mas acabo indo, sempre. E sabe por que? Porque eu fico imaginando que o Chico Buarque vai estar lá, na esquina, tomando um chope! Daí, eu pago pra ver! Quem não pagaria? E assim saio, ainda me divertindo com essa cena fantasiosa de eu me deparar com você na rua e a gente bater um papo sobre a vida. Eu ando te procurando, Chico, no Rio e no meio da Amazônia com a mesma convicção.

Viajar é preciso. Sonhar é preciso. O material já não engana mais. E a própria recompensa do meu trabalho também costuma ser muito mais do que dinheiro. Um sorriso, um comentário, uma conversa boa. E quantas aventuras, momentos incríveis, encontros fantásticos! Quantas caronas conseguidas apenas por ter um violão nas costas! Quantos Chico Buarque na esquina, de braços abertos, com suas histórias e destinos acolhedores!

Essas e outras andanças fomentaram a pessoa que eu sou agora. E você, mesmo que sem querer e de maneira muito indireta, tem alguma coisa a ver com isso. Mas assim: eu não acho que estou te "devendo" alguma coisa. Eu não gosto de dívidas. O que eu peguei, roubei. Já era. Está aqui dentro de mim, mil vezes subvertido e reinventado.

Portanto, o meu agradecimento profundo e aqui renovado se refere apenas à felicidade imensa de um momento. Quinta-feira passada, no palco do Canecão, a realidade mexeu com os nossos sonhos e isso foi o que nos deixou tão eufóricos e sinceros ao seu lado. Igual a crianças recebendo o maior presente do mundo. Porque não foi isso que aconteceu?

Obrigada, grande Chico! Obrigada por ter-me lembrado que eu sou criança e que ainda posso me maravilhar com a vida.